8 de junho de 2011
Autor: Comunicação Millenium
O governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, assinou na última segunda-feira, dia 6 de junho, o decreto (nº 43.007) estabelecendo a reserva de 20% das vagas dos concursos públicos estaduais para negros e índios. O novo sistema de cotas passa a valer 30 dias após sua publicação no “Diário Oficial”, ocorrida na terça-feira. O decreto vai vigorar por pelo menos dez anos.
O polêmico sistema de cotas, já em vigor na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade de Brasília (UnB), entre outras instituições de ensino, deverá ser apreciado pelo Supremo Tribunal Federal até agosto deste ano. Os ministros do STF vão julgar a constitucionalidade da Lei 10.558/2002, que determina a criação de políticas de acesso ao ensino superior para afrodescendentes.
Procuramos a advogada, especialista em controle de constitucionalidade e autora do livro “Ações afirmativas à brasileira: necessidade ou mito?”, Roberta Kaufmann, para falar sobre o tema. O objetivo é promover o debate sobre uma questão que interessa a todo o país, por determinar a concessão de direitos com base na cor da pele.
A especialista do Instituto Millenium afirma que ser contra as cotas raciais não significa desconhecer ou negar a existência de racismo no Brasil. “Entretanto, o racismo deve ser combatido na esfera penal, com punição exemplar para os indivíduos que assim se manifestarem”.
IMIL – Em um recente decreto, assinado pelo governador Sérgio Cabral, 20% das vagas dos concursos públicos realizados no estado do Rio de Janeiro ficarão destinadas a negros e índios. Qual é a sua opinião sobre essa medida?
Roberta Kaufmann - Acredito que a implantação de cotas raciais no Brasil é de uma inconstitucionalidade flagrante, pois ofende o princípio da proporcionalidade. Trata-se da importação de um modelo que foi pensado para resolver um problema que não é nosso – a questão da segregação institucionalizada. O sistema de cotas raciais foi idealizado e efetivado pioneiramente pelos Estados Unidos, país que teve um histórico secular de racismo oficializado, ou seja, praticado pelo Estado, em todos os níveis de governo e por meio de todos os três poderes. No Brasil, nós não precisamos implantar as cotas raciais para atingir a finalidade a que se pretende – o aumento da participação de negros em cargos de prestígio e nas camadas sociais mais elevadas. Basta implantarmos as cotas sociais para ingresso nas universidades que naturalmente vamos integrar o negro que mais precisa de apoio estatal – já que 70% dos pobres no Brasil são negros –, sem corrermos o risco da racialização do País.
É preciso esclarecer, no entanto, que o fato de sermos contra cotas raciais não quer dizer que qualquer ação afirmativa para outras minorias seja inconstitucional. O problema é a definição do que venha a ser minoria apta à proteção estatal por meio de cotas. Reconhecer a existência de preconceito e de discriminação em relação a determinado grupo é insuficiente para legitimar uma política estatal de integração forçada daquela minoria, senão deveríamos ser forçados a reconhecer a necessidade, em nosso sistema constitucional, de cotas para homossexuais, nordestinos, feios, Testemunhas de Jeová e obesos, dentre outras minorias que são alvo de preconceito e discriminação. O critério precisa ser objetivo e, sobretudo, revelar uma incapacidade efetiva do grupo beneficiado, como acontece com os deficientes físicos, os idosos e as gestantes.
Por outro lado, importa mencionar que ser contra cotas raciais também não quer dizer desconhecer ou negar a existência de racismo no Brasil. Entretanto, o racismo deve ser combatido na esfera penal, com punição exemplar para os indivíduos que assim se manifestarem. É preciso a todo custo acabarmos com a chaga da discriminação, do preconceito e do racismo em relação a negros no Brasil. Mas isso não se dá por meio de cotas, que só agravam o conflito e as tensões existentes.
IMIL – Quais as conseqüências negativas que a adoção desse sistema pode trazer para a sociedade brasileira?
Kaufmann - Inicialmente pode-se destacar o risco de fomentar na sociedade a crença de que raças existem. No momento em que já houve a total decodificação do genoma humano e na medida em que há consenso entre os geneticistas de que todos nós somos igualmente diferentes, qualquer tentativa de dividir a raça humana com base na cor da pele não faz qualquer sentido. Toda a discussão em torno da raça gira em torno de 0,035% do genoma humano. Se não faz sentido dividirmos os direitos das pessoas com base no tamanho da orelha, geneticamente, não se legitima a diferenciação com base na cor da pele. É preciso esclarecer que não existe racismo bom, nem racismo politicamente correto. Todo racismo é condenável e deve ser evitado.
Em todos os países em que as cotas raciais foram implantadas, em pouco tempo houve a insurgência de graves conflitos civis, como nos EUA, em Ruanda e na África do Sul. Ademais, grande parte das pessoas que integram o movimento a favor das cotas raciais objetiva a formação de uma identidade negra paralela à identidade brasileira, com valores e cultura próprios, como se fosse um defeito termos orgulho da miscigenação e do fato de nos identificarmos com uma única idéia de nação, de cultura e de povo.
Destaque-se ainda para a inconstitucionalidade da implantação dos Tribunais Raciais, como o exemplo da Universidade de Brasília. De composição secreta e com base em critérios secretos, a referida corte racial ignora que a miscigenação efetivada desde o início da colonização no Brasil trouxe como conseqüência a ausência de correlação entre cor do indivíduo e ancestralidade genômica. Não é à toa que recentemente foram realizados exames de marcadores genéticos em diversos negros no Brasil e o resultado foi que em vários casos, pessoas aparentemente negras possuem ancestralidade européia maior do que a africana. Neguinho da Beija-Flor, por exemplo, possui 70% de ancestralidade européia. Como definir quem de fato pode ser destinatário da medida?
IMIL – A constitucionalidade do sistema de cotas será votada pelo Supremo Tribunal Federal em breve. Quais são as expectativas?
Kaufmann - A expectativa é a de que o Supremo Tribunal Federal observe os riscos da implantação das cotas raciais em um país miscigenado como o Brasil. Não precisamos assumir o ônus de um Estado racializado para atingirmos o desiderato de integrar os negros. Cotas sociais, sim! Porque a pobreza, no Brasil, atua como o grande filtro para o efetivo exercício dos direitos fundamentais.